BULLYING E AS ARTES MARCIAIS COMO FERRAMENTA DE PREVENÇÃO

"Bullying" : um problema que não pode ser ignorado

As artes marciais, pela forma como são frequentemente apresentadas nos media como modalidades desportivas perigosas, continuam a ser das últimas escolhas dos pais como atividade extra curricular para os filhos.


No entanto, com a crescente consciencialização dos encarregados de educação para o problema do bullying, as aulas de artes marciais começam a tornar-se uma opção séria para resolver, ou pelo menos minimizar, um problema que nem sempre tem a devida atenção por parte dos recursos humanos das escolas.


As crianças, enquanto seres humanos em formação, não compreendem ainda as regras da sociedade que integram. Na ausência de adultos, é comportamento normal tentarem estabelecer hierarquias por via de força dentro do seu grupo da mesma idade, e nesse processo testar os limites das suas ações.


Tipicamente, quando as situações de bullying são divulgadas nos media, os encarregados de educação são frequentemente apontados como únicos culpados, ignorando completamente o facto daquela criança passar a maior parte do seu dia na escola e não em casa com os pais.



O incidente com Casey Heynes, a vítima que um dia reagiu. Uma falha de todo o sistema educativo.


Quase sempre o bullying é a consequência de vários fatores. A falta de financiamento para recursos humanos e/ou falta de formação relevante dada aos professores e auxiliares de educação, quando combinada com pais "desligados" do dia-a-dia dos seus filhos, mais cedo ou mais tarde é receita para criar problemas de bullying numa escola.


Os encarregados de educação podem sempre estar mais atentos e chamar à responsabilidade os professores a quem confiam a educacão dos seus filhos, de maneira a garantir que a escola é o espaço seguro de aprendizagem que precisam. Mas, por mais atentos que sejam, há limites à sua capacidade de moldar um sistema educativo que é há décadas, defeituoso. E é por esse motivo que é mais eficaz concentrar esforços em tentar garantir que os seus filhos ganhem as competências para saberem lidar com os seus próprios problemas, que tentarem corrigir todo um sistema educativo.


O bullying pode levar a graves problemas psicológicos que se prolongam para além da infância ou adolescência. Insegurança emocional, ansiedade e depressão são algumas das consequências de ser vítima de bullying por períodos longos. Frequentemente esses problemas prolongam-se até pela vida de adulto e, no seu limite mais grave, esse trauma de infância pode inclusivamente levar ao suicídio. Não pode por isso ser ignorado!





Artes marciais como solução ?

A dado momento, quase todas as crianças sentem necessidade de adquirirem competências para saberem defender-se física e verbalmente na ausência de adultos por perto. Algumas chegam mesmo a tomar a iniciativa de pedir aos pais a inscrição numa academia de artes marciais logo que começam a sentir insegurança na escola. Pois, apesar de serem crianças, já sabem o suficiente para determinar que é uma forma de serem capazes de criar limites às ações abusivas de alguns colegas, a que hoje chamamos de "bullies".


De facto, é impossível que os pais, professores e educadores consigam protegê-los sempre de agressões físicas e verbais por parte dos seus colegas, e nem tão pouco seria desejável mesmo se tal fosse possível. A capacidade de elas adquirirem competências nesse domínio nesta fase inicial das suas vidas é o que lhes vai permitir saberem defender-se também mais tarde enquanto adultos.


A prática de artes marciais em criança apresenta diversos benefícios, sendo o mais importante a prevenção e correção de problemas de bullying, que tem lugar a dois níveis:
  • Dotar as crianças de capacidade de defenderem-se fisicamente de agressões, que por sua vez tem como consequência o aumento da sua auto-confiança a um nível que permita-lhes estabelecer limites às atitudes dos colegas abusivos (os "bullies"). Até as crianças sabem, à sua maneira, que no limite de um desentendimento verbal, há sempre a possibilidade de confronto físico para o qual devem estar preparadas.

  • Dotar as crianças de melhores competências a nível de relacionamento com crianças da mesma idade, graças à possibilidade de socializar num ambiente de aula de artes marciais onde não se sentem ameaçadas *, como de outra forma poderá já não acontecer na escola. São essas melhoradas competências a nível de relacionamento com os colegas da sua idade que ajudam significativamente a prevenir que se tornem alvo dos bullies, que apontam as suas más intenções quase sempre para os colegas mais isolados e inseguros. No que diz respeito ao desenvolvimento social das crianças, o bullying tem aliás um gravoso efeito de bola de neve - menor desenvolvimento social > mais bullying > maior isolamento > atraso no desenvolvimento social da criança > ainda maior tendência para ser alvo de bullying .

* Numa boa aula de artes marciais, o instrutor deve conseguir manter a atenção completa em todas as interações entre crianças, e corrigi-las sempre que necessário. Tipicamente, tal apenas é possível com turmas com não mais que 8 alunos em simultâneo.


E que arte marcial ?

A resposta é mais complexa que a simples escolha entre arte marcial A ou B.


Como foi mencionado, um fator importante para que o treino de artes marciais funcione em minimizar problemas de bullying é que a criança desenvolva auto-confiança. No entanto, promover o desenvolvimento de auto-confiança quando não acompanhada de real motivo para a sua existência vai causar mais problemas que soluções! Isto é, se a criança recebe incentivo do seu instrutor para defender-se verbalmente, é essencial que esse incentivo seja acompanhado de competências reais de defesa pessoal, caso o conflito se torne físico. Se por um lado, não responder verbalmente a agressões verbais irá aumentar a frequência com que acontecem. Por outro, responder poderá precipitar tentativas de agressão física por parte do bully, daí a necessidade de haver sempre preparação para um confronto físico.


A escolha do instrutor certo, mais do que da arte marcial, é essencial! Nem todas as artes marciais são ensinadas/praticadas numa perspetiva de defesa pessoal, ainda que frequentemente sejam publicitadas como tal.


As artes marciais de hoje em dia podem ser praticadas com essencialmente 3 objetivos: - tradicional, desportivo e defesa pessoal.


O domínio tradicional diz respeito à preservação de tradições relacionadas com a forma como se vêm praticando as artes marciais ao longo do tempo. Um exemplo é a prática de formas (Katas do Karate, As Poomsae do Taekwondo, etc) - sequências de técnicas que devem ser memorizadas e cuja realização deve ser aperfeiçoada ao limite - que apesar de terem diversos benefícios para o praticante, nenhum está diretamente relacionado com a capacidade do praticante conseguir defender-se de uma agressão.


O domínio desportivo diz respeito ao treino de competição, geralmente em provas de confrontação ("sparring"). A competição, quando devidamente adaptada à idade dos praticantes, traz consigo um benefício essencial para a defesa pessoal: o saber reagir mesmo na presença de medo e ansiedade, algo que em ambiente de treino é quase impossível conseguir. No entanto, mesmo na competição de confrontação, as regras desportivas estão quase sempre, por motivos de segurança, desligadas da realidade da luta real...


É por isso que o domínio do treino específico de defesa pessoal se torna o pilar que suporta quase todo o sucesso que o ensino da arte marcial poderá ter na prevenção e correção de problemas com bullying.


Não só a criança precisa de aprender técnicas de defesa pessoal adequadas à sua idade e contexto, como também simular situações típicas de agressão e os instantes que as antecedem.


Infelizmente, muitas escolas ainda falham nesse ponto, frequentemente ignorando completamente o treino de defesa pessoal. O que significa que, até crianças com vários anos de treino e graduação alta na sua arte marcial, podem mesmo assim não conseguir defender-se da mais simples das agressões.


É importante considerar também, nas artes marciais mais antigas, que as mesmas não foram desenvolvidas tendo em conta os nossos dias. A forma como uma criança deve aprender a defender-se de um colega de 8 anos que a tente agredi-la, não pode ser igual à forma como um adulto procurava defender-se de um ladrão há 400 anos atrás numa qualquer aldeia na China. Por isso, muito mais importante que a arte marcial que se escolhe para uma criança, são os conteúdos e métodos de treino usados pelo instrutor, que deve procurar adaptar-se ao contexto moderno e não ficar bloqueado por tradições.


Para concluir :

Ainda que toda a gente possa ser alvo de bullying a dado momento na vida, situações persistentes, especialmente quando acontecem em criança, quase sempre se tornam em problemas graves.


Se suspeita que o seu educando é vítima de bullying, comece por abordar a situação junto dos seus professores da escola, procure em simultâneo apoio de um psicólogo especializado no assunto e, se possível, não ligado à instituição de ensino. Finalmente, inscreva a criança numa escola de artes marciais que aborde devidamente o tópico de defesa pessoal adaptada para crianças.


Entre em contacto :

Esteja perto da nossa escola ou não, sinta-se à vontade para enviar-me um e-mail a pedir referências ou conselhos sobre este tópico. No que diz respeito ao mesmo, reservo sempre tempo para ajudar no que puder. Ver contactos em https://coimbrado.com .


Autor: Telmo Amaro

Sobre o autor: É instrutor de Taekwondo e Defesa Pessoal desde 2010 e responsável pelo projeto de ensino "Coimbra Do" ( https://coimbrado.com ).
Para além da prática e ensino de Taekwondo, arte marcial na qual detém graduação de cinturão negro (4º Dan) e grau 2 de treinador, praticou por alguns anos Kick Boxing, Karate Shotokan e Jiu-jitsu Brasileiro. Foi também autor de conteúdo digital de ensino de Taekwondo, Karate e defesa pessoal que chegou a mais de 70 mil pessoas entre 2011 e 2017.